Não sou assim tão má. Ou não fui. O Juízo Final não me mete medo. Superada a morte, tudo se vê de maneira diferente. E não me refiro apenas à opinião, que é mutável, mas sim ao acto mais simples de observar. O mundo é colorido, o interior do corpo humano, agora sei-o, apenas vermelho. Mas para os fantasmas, ou pelo menos para os que estão em trânsito - é assim que nos chamam -, tudo é cinzento. Isso é algo que aprendi agora. Tive de esperar a morte para o saber. Não me recordo quem me preparou para este momento, mas fê-lo francamente mal. Se pudesse, apareceria diante dele e ditar-lhe-ia um verdadeiro livro sobre a morte. Seria de enorme ajuda para todos aqueles que vierem depois de mim. A verdade é que quando atravessamos alinha, nada é como imaginámos.
Não me resta muito tempo, ou talvez reste. Quem sabe? Sentar-me-ei, comtemplarei os que me olham com os olhos compungidos, os que põe flores na minha tumba, os que a pisam ou que inclusivamente passam ao largo; e esperarei a minha vez,como quem vai ao talho.
Desde aqui, não sei se pela companhia, ou pelo ambiente da catedral, tudo se torna prosaico, desnecessário quase. Até mesmo a própria morte. Gostaria de chorar por mim, sentir pena ao ver-me deitada nesse ataúde de corpo presente, mas seria totalmente falso e não creio que pudesse abonar nada a meu favor. Suponho que o meu destino já está marcado, é apenas uma questão de alguém vir e dizer-me onde ir. Confiar, tudo o que não fiz na vida, nas instâncias ultraterrenas.
Já não posso mudar nada. O meu passado está escrito. Espero apenas que a leitura feita por que tem de decidir seja benigna.
É tudo.
CIFUENTES, Paula - Beatriz de Portugal, a filha bastarda de D. Pedro e D. Inês. Lisboa: Bertrand Editora, 2008.
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